Irei como um cavalo louco




Antes de desenvolver e aprofundar a abordagem filosófica acerca de uma das obras mais importantes do cinema espanhol, é necessário conhecermos quem foi Arrabal, e quais os contextos que nos levam compreender um pouco melhor sua construção artística, assim como sua incorporação pessoal naquilo que escreve.

Fernando Arrabal nasce em 1932, em Melila, no continente africano (Marrocos Espanhol). Portanto vivera nesse local até meados dos anos 40, após a prisão de seu pai, quando se muda com a família para Madri, onde vive com sua mãe. Dois anos depois, seu pai, que havia sido preso anos antes por ter recusado a participar do golpe militar, desaparece em circunstâncias misteriosas e Arrabal nunca mais recebe suas notícias. Podemos compreender que todo seu desenvolvimento ocorre durante a ditadura franquista, logo, toda sua educação foi sob a doutrina dos vencedores da Guerra Civil (1936-1939), tendo como caracteristica um sistema incialmente fascista, que mais tarde se transformaria numa ditadura, de tipo conservador, católica e anticomunista. Tudo isso explode em cada partícula das criações de Arrabal, e não tem como ser diferente, é um contexto que por si só se reproduz e se complexifica no discurso artístico do autor, quase de maneira essencial para o funcionamento de sua obra.

Chegamos então no ano de 1973, dois anos após sua obra surrealista fascista Viva la Muerte (também irei fazer um post aqui no blog sobre ele), onde Arrabal desenvolve seu segundo projeto cinematográfico: Irei como um cavalo louco. Aqui, o autor aprofunda ainda mais seu surrealismo brutal a ponto de conseguir demonstrar com uma podridão dócil a subjetividade das ações ali descritas.



Análise experimental:

O filme narra a história de  Aden Rey, um homem moderno que, ao ser acusado de matar sua própria mãe, foge para o deserto impulsionado por sua própria autoafirmação. Sobretudo, em sua relação com sua mãe há uma certa intenção edipiana, que frequentemente aparece nas obras de Arrabal. Existe entre os dois uma conexão erotizada, que se estabelece como uma relação ciumenta de castração, num cenário de submissão àquilo que o outro representa. Portanto, para Aden, sua mãe é aquilo que representa o que vê em si, por ser tudo o que melhor representa sua impotência, tudo aquilo que nele vê, pois se trata de um erotismo por si mesmo. E é exatamente aqui o ponto principal da morte de sua mãe, a busca pela realidade do seu eu enquanto indivíduo pensante. O nascimento inconsciente da busca pela própria experiência de ser.

Desde menino, Aden desenvolve uma relação obscura com sua mãe, que faz parte também de um criticismo do autor à instituição familiar regida num poderio cristão, que conduz uma série de valores morais pré-estabelecidos. A morte dessa figura materna pode representar a quebra desse comportamento submisso. Também como o próprio repúdio de Aden ao sexo feminino, posição que no final do filme se torna explicitamente visível. Essa constituição do homem que lhe foi imposta pela própria mãe como mediadora dessa ação moral sacra, constitui também um certo ar de superioridade masculina. No entanto, a ação de matar sua mãe não pode ser considerada absolutamente uma quebra com o ser homem em uma sociedade, mas também como força que potencializa o repúdio masculino acerca do sexo oposto que em Aden habitava. Se trata de um erotismo pela própria imagem construída em todas aquelas alegorias morais e religiosas.


Aden então vai passar um tempo no deserto, onde encontra um pequeno homem com poderes místicos e transcendentais chamado Marvel, que em companhia de sua cabra, oferece a ele refúgio. Marvel desconhece o mundo civilizado, se alimentando apenas de leite de cabra e areia desértica. Pois é perceptível que é capaz de usufruir da energia provida de qualquer produto da natureza, o fato de ser a areia, junto com o leite, o símbolo vital de Marvel, remete à ideia do deserto como possibilidade de um vazio harmonioso, que se distanciasse dos dramas industriais e da dominação espacial do século XX. O leite também pode ser uma simbologia em relação à posição de Marvel e sua cabra, assim como a de Aden e sua mãe. A conexão maternal que liga essa ambiguidade que é parte do mesmo princípio, e que assim se reconhece.

Aqui inicia o descobrimento daquilo que seria a verdadeira natureza individual de Aden,  que percebe em Marvel a pureza do universo, percebe que ele é capaz de se comunicar com animais e ser respeitado pela natureza, assim como manipular fenômenos naturais. A relação dos dois se torna uma relação de adoração absoluta, de um lado, o homem do mundo moderno, e do outro, o homem do plano natural, em ambas as posições a adoração é gerada pelo espanto. Sobretudo, é notável que o que Aden vê em Marvel e sua cabra também representa aquilo que via em si e sua mãe, o que torna todo o dilema mais complexo e absolutamente erótico. 


Desde o início da trama, há uma série de delírios que Aden constantemente se vê penetrado. Imagens e lembranças que borbulham no seu inconsciente, muitas vezes o levando ao encontro do mórbido, onde habita um brilho de erotismo imoral e muitas vezes penoso.


Grande parte do erotismo entre Aden e Marvel é perceber de alguma forma que ambos nascem do mesmo princípio, apesar dos abismos contextuais enormes que lhes da diferenças claramente perceptíveis. Essa relação de semelhança interna os une de maneira a lembrar aquela mesma relação que tinha com a própria mãe. Mas há algo diferente ali, há uma exaltação do masculino, ele pode ver-se nos olhos de Marvel agora, e isso de alguma forma o excita. Em um certo momento, Aden o leva para conhecer o caos da cidade e falha na tentativa de lhe apresentar uma mulher, ele se torna absolutamente negado por elas, já que não se adequa ao comum. Portanto, isso nunca se torna um problema para Marvel, que simplesmente ignora o fato da feminilidade. Em nenhum momento demonstra atenção àquilo que Aden chamava de mulher, mas o mesmo possuía um desejo mórbido de ver Marvel penetrando-a, o que acaba por não acontecer.

Em seguida, Marvel demonstra interesse em uma mulher, o que enfurece Aden levemente, que demonstra um ciúme ardido, seguido de entendimento. Ao desenrolar do fato Marvel se casa com esta mesma mulher, e sob os panos coloridos prosseguem de mãos dadas. Sobretudo, ao anoitecer, enquanto todos estão dormindo, esta mesma mulher se mostra na verdade ser um homem para Aden, demonstrando a ele seu pênis. Portanto é aqui que fica explícito o erotismo homossexual que possuía em torno da própria figura masculina. Pois Marvel não demonstrava atenção pelo sexo feminino, trazendo assim uma atração pelo que ele mesmo representa. E é isto exatamente que Aden sente pela própria mãe, vê nela a construção dele mesmo enquanto homem e isso cria entre eles uma relação erótica narcisista. É exatamente ai que entra a pessoa que Marvel se casa, que mesmo possuindo a figura feminina esteticamente explícita, possuía em si um pênis. Justamente porque Marvel demonstrava claramente a mesma característica que existia entre Adel e sua mãe, o encontro no outro com aquilo que se parece comigo através de pulsões eróticas. No entanto, tudo leva pra que essa relação entre os dois se estabeleça de maneira homogênea, sendo eles partes distintas do mesmo princípio. 



O relacionamento dos dois se aprofunda a ponto de transformarem-se no mesmo indivíduo, momento em que Aden implora para que Marvel coma cada parte de seu corpo para que ele seja introduzido nele para sempre. O mesmo o faz, começa engolindo parte do seu braço e consequentemente todo seu corpo até se transformar em Aden. O que me parece claro é que na verdade Marvel ainda é a alegoria da mãe de Adel, no que diz respeito à grandiosidade do outro, do enxergar no outro aquilo que entrega a própria face. É por isso que mata sua mãe e é engolido por Marvel, numa forma de matar a si mesmo para assim transformar-se em algo legítimo. 

Todas as possíveis especulações sobre a obra são relevantes, existem inúmeras formas de analisa-o de acordo com a subjetividade de cada um. É um universo gigantesco. Sobretudo, é uma obra impressionante, de inclinação freudiana que torce a moralidade, critica as instituições religiosas, construindo um trabalho belo, poético, complexo e surreal, com uma trilha sonora recheada de canções tribais africanas, musica sacra e rimas infantis. 






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